Vania Viana
Antigamente, em maio, eu virava anjo. A mãe me punha o vestido, as asas, me encalcava a coroa na cabeça e encomendava: ‘canta alto, espevita as palavras bem’. Eu levantava voo rua acima.
Adélia Prado
Nasci na Paulicéia Desvairada, a mesma da Rita Lee. Diferente da Rita, não costumo transgredir, apenas, ousar. Eu já quis ser bailarina: ainda guardo as sapatilhas de ponta. Na memória, muitos rodopios. Gosto de música clássica com uma queda previsível por “A morte do cisne” de Saint Saens. Quando fecho os olhos me transformo no cisne. Mais tarde, cogitei ser atriz. Queria ser muitas mulheres, viver muitas vidas. O cinema é uma paixão antiga. Via Fellini sem entender tudo, mas guardando muito. “Os girassóis da Rússia” e “All that jazz” estão no topo da minha lista. Eu moraria num barco. Arranquei muitas risadas do meu pai na infância, insistindo em pedir para mudarmos para o Rio de Janeiro, só para ficar perto do mar. Na cozinha me aventuro muito pouco. Sei preparar pasta, molho de tomate e sobremesa. Depois de mudar para a Bahia, ganhei a fama de fazer um vatapá excepcional. O arquétipo feminino se ajusta muito bem em mim. O sonho de ser mãe foi realizado com sucesso. Na adolescência, para onde ia levava meu violão. A vida adulta silenciou este lado e depois de anos de trabalho na área da saúde, aqui estou eu no mundo das artes. A fotografia se expandiu para as artes visuais e continua me empurrando para contar histórias através das imagens. Adoro capturar uma cena, um acontecimento qualquer que marca a passagem do tempo: a vida que não se repete. Assim como também sei fabular para expressar meu mundo mais íntimo. As fotos de família sempre foram uma grande paixão que, ao longo do tempo, cresceu para abraçar também fotos encontradas. Nessas antigas imagens encontro a matéria prima que preciso para alimentar minha criatividade. Sinto uma atração irresistível por trabalhar com as mãos. Quando mergulho num projeto de bordar fotografia ou tecido, ou faço uma colagem é como se o mundo à minha volta se apagasse. Vou tecendo minha história como numa cena de filme, fico só e em silêncio.
BIO
Fruto da união de dois jovens que migraram para São Paulo em busca de uma vida melhor, Vania Viana nasceu no sudeste com um coração nordestino. Cresceu em meio ao caos da cidade grande cercada de afeto, memórias e ritmos cultivados por seu pai nas lembranças do seu amado sertão. Aos oito anos de idade, visitando a fazenda de um tio, fotografou um bezerrinho branco dentro do curral e o resultado desta captura causou tal deslumbramento que o desejo de relacionar-se com imagens nunca mais se desfez. Seu trabalho hoje lida com memórias, família e a inexorável passagem do tempo, e por ser uma pessoa conectada com o lado invisível da vida, se interessa por registrar práticas religiosas, o movimento das pessoas e sua fé.
STATEMENT
A fotografia não me veio como avalanche. Sua presença deu-se lenta e persistentemente. Na infância e juventude, fotografar era apenas combinar códigos preestabelecidos. Quando da minha formação em odontologia, a imagem técnica cumpriu um papel objetivo de registrar os casos clínicos dos pacientes que atendi. Hoje depreendo nesses fazeres anteriores a existência dos elementos que configuram meus interesses atuais: o contato com o inefável; o acesso aos acontecimentos em família: as histórias reais e inventadas dentro dessas memórias; e a constante (re)elaboração do feminino a partir de mim, de minha mãe, de minha avó e da figura maternal de Iemanjá. Estou, portanto, à procura de formas de manifestação da vida, tanto as do passado acesas no presente como as do agora impalpável que se diluem no espaço-tempo e me impulsionam ao futuro. Foi a Umbanda, com seus rituais, o primeiro universo pelo qual pude ultrapassar o plano das coisas tangíveis. As surpresas do convívio com a fé, cujas significações não se encontram dicionarizadas, me impulsionaram ao encontro de Iemanjá. Desde 2017, quando iniciei aprofundamentos técnicos e poéticos no campo da fotografia, me dedico a fotografar a festa da Rainha do Mar, em Salvador. Interesso-me por essa relação do humano com o sagrado, do contato entre a materialidade do corpo e o inefável divino. Esse contato exige um preparo cuidadoso que se expressa nos presentes, nas flores, na ornamentação dos balaios, nas vestimentas e, acima de tudo, nas inter-relações entre a carne e o cosmo. Trata-se, também, da manutenção/produção de algumas memórias, a da festa em si, a minha particular e a vivida coletivamente. Iemanjá me atravessa pela sua força maternal e as derivações de seu arquétipo inscritas na fertilidade, no zelo, na amorosidade: a mãe primordial. É a imagem da mãe, o avançar da idade e a persistência do passado que me levam a trabalhar com o meu arquivo fotográfico familiar, principalmente influenciada pela perda de minha avó. Foi ela quem me cuidou como filha. Disponho-me a tatear o tempo e, nele, os afetos dessas relações. Mergulho em busca da criança que fui, dos sentimentos que nutri, das experiências que tive e, tocada por essas reminiscências acordadas pelas fotografias tento interferir no que já passou: seja para modificá-lo em mim ou simplesmente destacá-lo no tempo (reviver). Talvez seja por isso que a produção tenha migrado de um fazer com a câmera para um fazer com as mãos. A urgência em produzir algo com as mãos vem da cura proporcionada pela mãe. Manipular as fotografias do meu arquivo, vivo, de modo a repeti-las, corta-las, cola-las sobre outras imagens cumpre um duplo papel: de um lado, esse olhar tardio ocasiona pacificar o passado – feridas que, quando coladas e as reordenadas, começam a se fechar –; do outro, mostrar-me coisas que passaram desapercebidas. Meu trabalho, portanto, está vinculado à aliança entre vida e morte, físico e espiritual, passado e presente, documento e ficção. É no tempo, e nos espaços que ele ocupa, que me posiciono. A cronologia me obriga a enfrentar fantasmas e coletar água das chuvas. A fotografia me ensina como dissipar o medo e nadar em alto mar. Embora trabalhe orientada por interesses do meu âmbito particular, meu olhar está sempre em busca de uma vida que se elabora, também, fora de mim; de formas de vida diversas à minha. Na gangorra do existir vivencio a gravidade de cair e colar ao chão e a força da esperança que me faz voar. Alegrias, mandacurus, transes: tudo é fermento criativo. Por isso me disponho, também, a olhar outros espaços e acontecimentos como o Sertão de meu pai e necessidade de um feminino, carente de crítica, das Muquiranas. A fotografia age em favor da revelação do invisível no mundo e em mim, e é assim que tenho me dedicado a ver: ora cega apalpando para conhecer, ora vidente procurando nas sombras o que pode escapar.
CURRICULUM VITAE
Em 2023 participou das exposições coletivas: “Um lugar onde tudo é possível”, no Museu Carlos Costa Pinto e da XIII Bienal de arte fotográfica brasileira em cores. Em 2022, no Med Photo Fest no Monastero dei Benedittini , “L’Arte dell’Incontro” em Catania, Sicília, Itália; exposição itinerante “Vento vai, vento vem” com o Ateliê Oriente no Paraty em Foco, RJ,no Foto Rio, RJ e no Solar Fotofestival, Fortaleza, Ceará; “Cotidianos para guardar – Bahia”, Palacete das Artes, Salvador – Ba; I Mostra de Processos Criativos do Ativa Atelier Livre, Salvador – Ba; “Fé”, exposição virtual no Centro Cultural Virtual Segundo Olhar. Em 2021, XXII Bienal de arte fotográfica brasileira em cores, Londrina, Paraná (on-line); Yê Yê Omo Ejá, Galeria Virtual Eixo Arte; Yê Yê Omo Ejá – Galeria Fragmentos do Espaço Pierre Verger, Salvador - Ba; Selfie em Foco do Festival de Fotografia Paraty em Foco. Em 2020, Agosto das Artes, Mostra virtual; Salvador do povo, de Lina e de todos os santos e Cores, Amores, Recantos... Bahia, ambas no MAM – Ba. Em 2019, Baiana: iê acarajé, iê abará na Fundação Gregório de Matos, SSA, Ba; III Mostra Agosto das Artes no Palacete das Artes, Salvador - Ba e da XXI Bienal de Arte Fotográfica Brasileira em Cores, São Caetano do Sul - SP. Em 2018, Caminhos do Sertão, Galeria Claudio Colavolpe Photo Art, Salvador - Ba. Em 2017, Um olhar além do sorriso, UEFS, Feira de Santana- Ba. Publicações: A casa revista – 2022, acasafotoarte revista, agosto, 2022; Cotidianos para guardar - Ba, 2022; Submersa, 2021, Fotolivro, Editora Origem. Sotaques Salvador, 2021 e Arte Gente, 2020 – Sobregentes Editora. Participa da Coleção Mediterraneum Collection, Catania, Sicilia, Itália.